O Amor em Ruínas: The Weeknd e a Falência do Afeto na Cultura Contemporânea
- Sarah Alves
- 6 de mai.
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Atualizado: 7 de mai.
Uma visão niilista do amor nas letras de The Weeknd, refletindo sobre as relações descartáveis da modernidade líquida.
Por Sarah Pereira Alves
Em tempos marcados por relações instáveis, desapego romantizado e afetos transformados em alimento do ego, The Weeknd (Abel Makkonen Tesfaye) surge como a voz que traduz a inquietação emocional de toda uma geração. Ele é cantor, compositor, ator e produtor musical canadense. Emergiu na indústria em 2010, conquistando reconhecimento com músicas que mesclavam R&B, soul, dance, eletrônica, pop e hip hop. Com o tempo, consolidou-se como um dos artistas mais influentes da música popular contemporânea, sendo vencedor de muitas premiações e categorias como Grammy Awards, Billboard Music Awards e American Music Awards. Sua versatilidade sonora, marcada por lirismo sombrio, suas produções abordam escapismo, romance e melancolia, e frequentemente são inspiradas em suas vivências pessoais — elementos que o tornaram um ícone da cultura pop atual.
Vivemos em uma era em que tudo parece estar disponível — menos o afeto real. As juras, antes escritas em cartas ou por cortejos, hoje — quando feitas — perdem seu valor, e somem tão rápido quanto foram digitadas. Os encontros perdem o “timing”, duram o tempo de uma notificação, marcados por aplicativos onde se navega entre perfis como em um cardápio de restaurante. E os términos? Acontecem por mensagens curtas ou pelo simples ato de não responder — o temido “ghosting”. É nesse terreno emocional devastado que as músicas de The Weeknd encontram ressonância profunda. Elas não apenas retratam o amor em ruínas, mas encarnam, com precisão cruel, o emocional de uma geração saturada de conexões e carente de vínculos. Seu universo sonoro — sensual, sombrio e confessional — escancara a falência afetiva do nosso tempo. O amor contemporâneo tem sido cada vez mais esvaziado de permanência.
Em Amor Líquido, o sociólogo Zygmunt Bauman descreve uma era em que os vínculos afetivos se tornaram frágeis, instáveis e facilmente descartáveis. O medo da dor, da dependência e da entrega dá lugar a conexões rápidas e utilitárias, pautadas pelo prazer imediato e sem responsabilidade afetiva — relações que começam e acabam com a mesma facilidade de um clique. Essa lógica se manifesta de forma contundente em “Heartless”, onde The Weeknd dramatiza a figura de um homem emocionalmente devastado. Ele oscila entre tentativas frustradas de mudança — “I try to always do right / I thought I lost you this time” — e recaídas em ciclos de autossabotagem: excessos como mecanismos de fuga — “Amphetamine got my stummy feelin' sickly”. A repetição de “'Cause I'm heartless” soa como mantra e confissão, revelando não frieza, mas um sujeito preso à própria ruína. O amor, nesse cenário, torna-se efêmero e consumível — um produto, como diagnostica Bauman, da lógica líquida dos afetos.
Mas se Bauman vê o amor líquido como resultado de uma modernidade que transformou tudo em consumo, Jacques Lacan em O seminário, nos leva a um ponto ainda mais profundo. Para ele, o sujeito é, por estrutura, carente: desejamos aquilo que nos falta, mas essa falta nunca se preenche de fato. O amor, então, é um jogo de projeções, onde a presença do outro jamais preenche o “vazio” do ser. Essa concepção aparece dilacerada nas canções de The Weeknd, como em "Call Out My Name", em que o artista mergulha na dor de um amor não correspondido. Há aqui o sacrifício feito em nome do afeto: “I almost cut a piece of myself for your life”, mas também o reconhecimento de que esse gesto foi em vão. Expondo o impasse entre querer ser amado e nunca ser plenamente acolhido.
Há um aspecto ainda mais perverso na dinâmica contemporânea do afeto: a hiperconexão que aprofunda o isolamento. Em um mundo saturado de imagens, curtidas e performances, amar se tornou espetáculo — uma encenação sem vínculo real. Essa lógica foi prevista por Guy Debord, em A Sociedade do Espetáculo, vivemos sob a tirania das aparências, onde o outro é amado não pelo que é, mas pelo que representa. Essa crítica ecoa em “Save Your Tears”, abordando a dificuldade de se comunicar e uma disfuncionalidade no enfrentamento de problemas. No clipe, o narrador reconhece tardiamente a dor que causou, se apresenta com o rosto “deformado” por procedimentos estéticos para uma plateia mascarada e inerte. A arma que dispara confetes simboliza o esvaziamento afetivo: a dor vira estética, a emoção vira performance. The Weeknd, se torna simultaneamente produto e crítico desse sistema. Na música, a catarse vem com o refrão, mas o vazio — esse, permanece depois que a música acaba.
Nessa lógica de ausência e vertigem afetiva, Hilda Hilst emerge como voz feminina ancestral que antecipa a falência do amor idealizado. Em seus poemas, o desejo é abismo e redenção. O erotismo é labirinto. O amor, ruína. “De te amar, possuída de ossos e de abismos / Acredito ter carne e vadiar / Ao redor dos teus cimos (...) Do muito desejar altura e eternidade/ Me vem a fantasia de que Existo e Sou” (HILST, 2004, p. 103) — versos que condensam a entrega corporal ao delírio do desejo e à ilusão da completude.
Essa dependência afetiva se converte, em Hilda, ora em gozo, ora em desespero. O corpo ama, mas odeia o que ama — espelho da ambivalência que The Weeknd encarna em "The Hills", quando diz: “I only call you when it’s half past five / The only time that I’ll be by your side.” O amor se torna vício noturno, condicionado à escuridão e ao interdito. Em outro momento: “When I'm fucked up, that's the real me”, revelando que sua identidade só emerge no colapso — no ponto em que o afeto se mistura ao vício, ao sigilo, à carnalidade. Essa ambivalência ecoa na poética de Hilst: “Porque há desejo em mim, é tudo cintilância” (HILST, 2004, p. 17).
Ambos expõem o afeto como experiência fragmentada, líquida, marcada pelo excesso e pelo nada. O que sobra são corpos que se entrelaçam para depois se afastar; palavras ditas com fúria ou ternura, mas nunca com estabilidade. Emoções que escorrem pelos dedos como o amor líquido de Bauman, como a falta inassimilável de Lacan.
No fim, resta a pergunta — ainda é possível amar na era das conexões instantâneas e dos sentimentos voláteis?
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução e paráfrase: Railton Sousa Guedes. Editoração e tradução do prefácio: Coletivo Periferia.
LACAN, Jacques. O seminário: livro 6 – O desejo e sua interpretação. Tradução: Traço Freudiano, Veredas Lacanianas – Escola de Psicanálise. Disponível em: http://www.traco-freudiano.org. Acesso em: 5 de maio de 2025.
The Weeknd. After Hours [Álbum]. XO / Republic Records, 2020.
The Weeknd. Beauty Behind the Madness [Álbum]. XO / Republic Records, 2015.
The Weeknd. Starboy [Álbum]. XO / Republic Records, 2016.
HILST, Hilda. Do Desejo. 2004.
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