A Ópera Gótica: o retorno da Mother Monster
- Sarah Alves

- 6 de mai.
- 8 min de leitura
Atualizado: 7 de mai.
Por: Sarah Pereira Alves

Em uma época marcada pela tensão da Guerra Fria, pelo governo conservador de Ronald Reagan e por um país que digeria os traumas recentes — como a explosão do ônibus espacial Challenger —, nascia em Nova York uma criança que, décadas depois, se tornaria um símbolo de reinvenção cultural. Era 28 de março de 1986, quando Stefani Joanne Angelina Germanotta veio ao mundo, enquanto o pop norte-americano colhia os frutos de sua era dourada com nomes como Madonna e Michael Jackson no auge, moldando o imaginário global com videoclipes, coreografias icônicas e produções espetaculares. No ventre dessa efervescência política e artística, surgia Lady Gaga, futura herdeira e revolucionária de um legado que ela transformaria com sua própria assinatura radical.
Mundialmente conhecida como um dos maiores fenômenos da cultura pop do século XXI. Filha de uma família ítalo-americana, a artista demonstrou desde cedo um talento incomum para a música, aprendendo piano aos quatro anos e compondo suas primeiras canções ainda na adolescência. Com o apoio da família, cursou brevemente a Tisch School of the Arts, da Universidade de Nova York, mas decidiu abandonar os estudos para seguir uma carreira independente na indústria musical. Com forte influência de artistas como a banda Queen, em especial Freddie Mercury; David Bowie, Stevie Wonder, Prince, Madonna e Michael Jackson. Gaga se destacou desde o início por sua ousadia, excentricidade e versatilidade artística.
Sua ascensão começou de forma estrondosa em 2008 com o lançamento de “The Fame”, seu álbum de estreia, que trouxe hits como “Just Dance”, “Poker Face” e “Paparazzi”. De início comparada a artistas pop contemporâneas, ela rapidamente se destacou por seu domínio criativo, ousadia e composições provocativas. Gaga nunca foi apenas uma cantora pop: desde o começo, usou sua música como extensão de suas inquietações internas e como plataforma de discursos sociais, culturais e políticos.
A trajetória de Lady Gaga é marcada por sua fluidez entre os gêneros musicais. Ela já mergulhou no synth-pop, rock alternativo, jazz, country e música eletrônica, sempre com personalidade e profundidade. “Born This Way” (2011), seu segundo álbum, é um manifesto em favor da liberdade sexual, da diversidade e da aceitação, sendo adotado como hino pela comunidade LGBTQIAPN+ ao redor do mundo. Já “Joanne” (2016) revelou um lado mais introspectivo e pessoal, explorando raízes familiares e perdas íntimas. Em “Chromatica” (2020), voltou às pistas de dança, mas com uma abordagem emocionalmente carregada, expondo lutas com saúde mental, abusos e recuperação.
A artista é também um ícone da moda, seus figurinos sempre causaram impacto — seja o vestido de carne crua usado no VMA de 2010, os chapéus esculturais de Philip Treacy ou os trajes futuristas criados em parceria com Alexander McQueen. Gaga usa a moda como extensão de sua arte e como linguagem política. Seus looks transgredem normas de gênero e beleza, desafiando os padrões impostos pela indústria. Ela faz de seu corpo um palco, sua imagem um manifesto.

Mas sua arte não se restringe à música e a moda. Lady Gaga se destacou como atriz, recebendo aclamação da crítica por sua atuação em A Star Is Born (2018), ao lado de Bradley Cooper, pela qual foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz e venceu a estatueta de Melhor Canção Original com “Shallow”. Posteriormente, encarnou Patrizia Reggiani no filme House of Gucci (2021), sendo novamente reconhecida por sua entrega dramática. Sua atuação no cinema provou sua versatilidade e ampliou sua influência cultural para além da música.
Gaga nunca teve pudores em expor suas dores. Falou abertamente sobre depressão, transtorno de estresse pós-traumático, fibromialgia, assédio sexual e os desafios de viver com dor crônica. Em seu documentário Gaga: Five Foot Two, exibido pela Netflix, revela bastidores de sua vida artística e pessoal, abrindo espaço para uma nova narrativa em que os artistas são humanos como qualquer outra pessoa comum e suas vulnerabilidades são como as nossas, algo a ser superado. Em tempos de cultura globalizada e digital, sua franqueza tornou-se um ato político. Além disso, é ativista engajada: fundadora da Born This Way Foundation, que promove saúde mental e empoderamento jovem. Esta que também se posiciona a favor dos direitos civis, da equidade de gênero, do controle de armas nos EUA e contra a censura artística.
Com mais de 13 Grammys, 1 Oscar, 2 Globos de Ouro, 1 BAFTA e inúmeras indicações ao Emmy, Lady Gaga é uma das artistas mais premiadas e influentes da história contemporânea. Foi reconhecida pela Billboard como Mulher do Ano em 2015, já figurou nas listas das pessoas mais poderosas da Forbes esteve em 7º lugar em 2010 e é referência constante nas publicações da Time, Rolling Stone e Vogue. Mas sua maior marca talvez seja sua constante reinvenção — nunca repetitiva, sempre provocativa.
Mayhem On The Beach: O espetacular retorno da mãe monstra
Em 2025, essa trajetória encontrou um de seus ápices emocionais no megashow realizado na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. Aos 39 anos, reuniu cerca de 2,1 milhões de espectadores, quebrando recordes — superando o público de Madonna em 2024. O espetáculo, batizado oficialmente de Mayhem On The Beach, mas carinhosamente apelidado de "Gagacabana" pelos fãs brasileiros, foi um dos maiores eventos musicais da história do país e de sua carreira, marcou a abertura da turnê The Mayhem Ball, em celebração ao lançamento de seu novo álbum, “Mayhem”.
O show integrou o projeto “Todo Mundo no Rio”, da prefeitura carioca, e foi transmitido ao vivo para milhões de pessoas pela TV Globo, Multishow e Globoplay.

Como uma ópera gótica dividida em cinco atos, o show reuniu o melhor das muitas faces de Gaga. Ela surgiu do alto de uma imensa saia vermelha — que, minutos depois, se revelou como uma gaiola — para cantar “Bloody Mary” e “Abracadabra”, já levando os fãs ao delírio.

Em meio a coreografias visionárias, trocas de figurinos com as cores do Brasil e discurso com tradução simultânea, mostrou que seu amor pelo país é genuíno. Em “How Bad Do U Want Me”, os dançarinos surgiram com camisas da Seleção Brasileira, e a própria vestia verde, amarelo e azul.

Em “Poker Face”, a performance em cima de um tabuleiro de xadrez culminou com uma vitória teatral sobre a oponente, encerrada com um gesto carinhoso aos fãs — a icônica "pata" dos “little monsters”.
A noite foi permeada por emoções intensas e momentos de profunda conexão com o público. Antes de “Alejandro”, Lady Gaga subiu em uma das estruturas do palco, estendeu uma bandeira do Brasil e chamou um jovem intérprete, Nicholas, para ajudá-la a transmitir uma mensagem tocante. Em lágrimas, ela disse:
Hoje nós estamos fazendo história. Mas ninguém faz história sozinho. Sem vocês, as pessoas incríveis do Brasil, eu não viveria este momento. Obrigado por fazerem história comigo. Os brasileiros são a razão pela qual eu posso brilhar. Vocês são tão vibrantes e tão lindos quanto o sol e a lua surgindo sobre o oceano, bem aqui na praia de Copacabana
Não faltaram homenagens à comunidade LGBTQIA+ — com um discurso comovente antes da execução de “Born This Way” — gestos de carinho, como ao descer do palco estendendo a bandeira da comunidade e entregar um buquê de flores pretas aos fãs que estavam na grade, este que reflete um gesto comemorativo de casamento.

A apresentação foi encerrada de forma teatral, impactante e simbólica. Durante a introdução de “Bad Romance”, Gaga apareceu em uma mesa cirúrgica, envolta em plástico, cercada por dançarinos vestidos como enfermeiros com máscaras “bicudas”. Ressuscitada diante do público, proclamou: "Monstros não morrem", dando início ao último ato. A frase ecoou no telão e no coração do público, marcando não só o final do espetáculo, mas a permanência de sua arte na memória coletiva.
Sua performance — “grotesca” e poética — dialoga com as obras O Jardim das Delícias Terrenas, do pintor holandês Hieronymus Bosch e O Lago dos Cisnes de 1876 do compositor russo Piotr Ilitch Tchaikovski e, libreto de Vladimir Begitchev e Vasily Geltzer, estreado em 1877 no Teatro Bolshoi em Moscou. Assim como as obras, o show foi um microcosmo de opostos: luz e sombra, bem e mal, paraíso e inferno, amor e ódio. Gaga é uma artista que habita essas dualidades, dançando com um esqueleto em “Zombieboy” e, logo depois, sentando-se ao piano para cantar “Shallow” com a doçura de quem ainda acredita no amor, bem como, sua batalha coreografada em “Poker Face”, onde enfrenta sua “doppelgänger”, simbolizando a guerra de seus conflitos internos e suas dicotomias.

A estética do espetáculo uniu elementos góticos, punk, eletrônicos e até progressivos. A banda, afiadíssima, recebeu destaque especial com o baterista Tosh Peterson, cujas pancadas frenéticas lembravam os dias memoriosos do Nirvana. A produção foi desenhada como uma narrativa cinematográfica — com terror, comédia e drama. Lady Gaga não apenas performou: ela construiu um rito coletivo, uma catarse, um manifesto. E assim, como uma fênix renascida, a artista se reafirmou como símbolo de força, liberdade e transformação.
Declarou, com lágrimas nos olhos:
Quero agradecer por vocês nunca terem desistido de mim. Eu teria voltado antes se pudesse. Vocês me mandaram tanto amor. A música pode mudar vidas. Comunidades podem mudar vidas. Da primeira vez que vim, nos tornamos amigos. Agora, somos família.

O público, diverso, fervoroso e devoto, mostrou que Gaga não pertence apenas a um nicho: ela é reflexo de um tempo, um espelho de todas as nossas contradições.
Agradecimento do Pai da Lady Gaga ao Brasil e Memes do X:



Referencias:
FERNANDEZ, Franc. Vestido de carne usado por Lady Gaga no VMA 2010. MTV Video Music Awards, 2010.
GAGA, Lady. Gaga: Five Foot Two. Direção: Chris Moukarbel. [S.l.]: Netflix, 2017. Documentário.
MAYHEM On The Beach. Show de Lady Gaga na Praia de Copacabana. Transmissão: TV Globo, Multishow e Globoplay, 2025.
PRADO, Museu do. O Jardim das Delícias Terrenas – Hieronymus Bosch. Madri, [1505]. Óleo sobre painel. Disponível em: https://www.museodelprado.es. Acesso em: 3 mai. 2025.
TCHAIKOVSKI, Piotr Ilitch. O Lago dos Cisnes. Libreto de Vladimir Begitchev e Vasily Geltzer. Moscou: Teatro Bolshoi, 1877.
BILLBOARD. Woman of the Year: Lady Gaga. Billboard, 2015. Disponível em: https://www.billboard.com. Acesso em: 3 mai. 2025.
FORBES. The World's Most Powerful Women. Forbes, 2010. Disponível em: https://www.forbes.com. Acesso em: 3 mai. 2025.
JULIMEL BALLERINA. O Lago dos Cisnes (The Royal Ballet, 1980). YouTube, 23 set. 2011. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2cWdCqYXUIc. Acesso em: 5 maio 2025.



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